Wednesday, June 28, 2006

Vislumbre

Vislumbre

Sono, muito sono, essa sensação me carregava por todo o dia. Um longo, mas muito longo dia, que alcançava as duas horas da tarde. Entrei na sala para assistir à palestra, era o que o mundo esperava de mim.

O mundo esperava isso de mim, é claro, não diretamente, mas através de várias mediações. O mundo – um pedaço de terra com tanta matéria, que fazia com que outros pequenos pedaços de matéria ficassem presos a ele, até mesmo aqueles mais ativos e enérgicos, chamados de formas de vida – nunca poderia exigir nada diretamente de mim. Mas os outros pedacinhos de matéria, acoplados a ele pela mística força da gravidade, ah, esses sim! As necessidades materiais e as obrigações sociais, a fome e a sociedade eram a principal forma de intervenção do mundo sobre este eu que vos fala. Já que eu, um ser humano, vivia numa sociedade onde as pessoas se inter-relacionavam, embora não o percebessem muitas vezes, totalmente presas em si mesmas; cada ação minha implicava em conseqüências para outros. Logo, as ações dos outros, uns seis bilhões, implicavam em inúmeras conseqüências para mim. Foi assim que eu nasci num lugar onde não escolhi, culpa de toda a história da minha linhagem familiar; eduquei-me num ambiente que também não me seria o mais favorável; e desenvolvi, num misto de subjetividade nebulosa e pressões sociais obscuras, o que eu sou hoje: uma completa invenção de mim mesmo e do mundo. Assim, chegando onde estava, o mundo me dirigia ao grande anfiteatro, e, como eu não tinha a menor disposição no momento de colocar a minha subjetividade contestadora em ação, deixei-me ir para lá.

Muito bem, sentei ma numa poltrona do fundão mais ou menos próximo da porta, na esperança de poder sair rapidamente ou para ir ao banheiro sem atrapalhar muita gente; eu estava a três poltronas da entrada.

Pigarro, pigarro, pigarro...
As idéias concatenavam-se de maneira lógica, irrepreensivelmente lógica. O palestrante expõe que uma observação compõe-se de um ato observado, uma ação observadora, um sujeito que observa; o que implica uma injunção de três elementos em ideal concatenação, de forma a compor uma 1) ob, do latim: ab 2) serva do latim: conservar, manter e 3) acto, no latim: ação. Significação completa, que transcendeu seu local original de formulação lingüística; desembocando num local temporal remoto, devido à proximidade que este tipo de prática tem com as raízes do que chamamos humano. E a observação vai, portanto, se convertendo numa não-observação, estabelecendo uma dicotomia ontológica conforme é possível se aperceber da irremediavelmente coesa explanação do palestrante que, exímio retórico, converte uma prática humana processual e histórica numa decodificação binária e estanque. Minha subjetividade pesca três vezes, com firmes solavancos assustados com a súbita reclinação de minha cabeça, impedindo-me de me entregar à não-observação, só que eu não suporto mais, às favas com a palestra. Eu durmo escuro.

Meu encontro com Zuleika é atrasado, que horror! O homem de preto se aproxima com o coração de minha mãe, de novo, Zuleika é uma ovelha, eu sou minha mãe morta num caixão...e as idéia objetivam-se numa injunção transtemporal englobando tudo dentro de sua incorporação em um logos global, ou seja, eu dormi.
Olho no relógio, um minuto se passou. Embora eu tenha sonhado, um longo sonho. Curioso...

Enquanto meu trono de pedra se converte em minha mão morta, vejo os caminhos para a Faculdade se abrirem quando levanto meus braços, conduzindo o povo escolhido, nem hippies, nem beatniks, mas mods da swinging London; ao lado Charton Heston segurando sua winchester cumprimenta Gus Van Sant. Desapegado dos nexos observacionais, mais trinta segundos de sonho. Estranho os dois sonhos repentinos. Geralmente eles vêm no meio de um bom sono, REM exige mais tempo;

Cai o pano, eu estou frente a frente com Elvis, ele me passa o bastão da orquestra e o jardim de infância é todo meu. Meu e do homem de preto com o coração de minha mãe. Dividimos o gira-gira e o escorregador, de forma que Zuleika também possa brincar. Elvis está no palco dizendo que a observação é um amor tenro, e que as injunções são como sapatos azuis. Olho no relógio enquanto Elvis fala para minha mãe e para o palestrante, nem 15 segundos! O homem de preto está na porta do anfiteatro, segurando a ovelha com zuleika a seu lado. Eu pulo de minha cadeira e não vejo mais Elvis. Dez segundos passados, os quinze nem existiram, eram sonho de pé com o gira-gira sobre minha cabeça onde brinco com minha mãe e minha mão, ambas mortas. Eu sei que foi Charlton Heston. E persigo o canalha, cinco meses, dia e noite, por toda a Costa Oeste dos Estados Unidos da América, até encontrá-lo em sua casa guardada por um exército de Michael Moores raivosos, portando fotografias de meninas assassinadas, tentam me matar de remorso, mas tenho Jesus no coração, e o assassino é Charlton Heston, por cumplicidade simbólica. Com o queixudo sob a ponta de minha bota, peço a ele que não chore, pois não gosto de matar gente triste. O homem de preto me pede licença e recomenda que eu cuide bem de Zuleika. Charlton é Zuleika. Descubro isso dez anos depois de casado. Cinco segundos. Só.

Eu corro assutado.
Até a porta do anfiteatro. Eu corro acordado. Tento apagar o interruptor, na escuridão as pessoas me xingam. Eu acendo de volta e saio do Anfiteatro. Olho o relógio.
O homem de preto me pega pelo braço, me leva até o monte onde dorme a serpente branca. No topo, Elvis me espera. O homem de preto retira sua roupa e como uma sacerdotisa iraniana, Zuleika me conduz até o REI. Com sua roupa branca com lantejoulas ele me oferece as chaves do universo.

Meu relógio não marca mais a diferença entre o instante em que saio da porta do anfiteatro até chegar na rua. As pessoas estão estátuas. Os carros estão parados. Os mendigos não pedem esmolas e os flanelinhas nunca vão me alcançar. Mas se não há tempo, o mundo não espera mais nada de mim. Não há mais sociedade, só eu. Entro no meu carro, com poltrona macia.

Elvis espera minha resposta. Eu vejo ele mostrar tudo que eu terei. Eu sou o momento inicial, o caos que se torna certeza, que se torna possível, que se torna passado; a luz das estrelas, o primeiro hidrogênio, o primeiro metal pesado. Eu sou todas as estrelas e apenas uma ao mesmo tempo. Eu sou um planeta quente, sou gás, sou gelo, sou água. Sou a primeira gota de chuva, sou química orgânica, o primeiro eucarionte, um peixe, um anfíbio, um réptil. Eu sou um rato, um gambá, um macaco, um homem. Sou um nome perdido, uma mãe gorda feita de barro, adorada por todos, até o fogo e o arado. Sou Krishna, sou Zaratrustra, sou Buda, sou Jesus. Maomé, Marx, Jean-Paul Sartre. Eu sou Elvis. Eu sou a criação. E eu sou existência pura, materialmente objetivada, cujo motor é a luta de classes e o sexo, sem nenhuma metafísica, além da liberdade humana transcendental nela mesma. Eu sou utopia. Eu te amo, garota, e se é quase certo, eu preciso de você. Creia em mim quando digo. Zuleika, a qual nunca vi mais gorda me beija, vestida de minha mãe e se masturba com minha mão morta – a mão morta da criação, mesmo morta, ainda é uma mão divina, eu digo sorrindo de soslaio.

No meu carro, no meu relógio, nada perto de bilhões de anos se passaram. Em minha mão, o cheiro de Zuleika, ácido.

Saio do carro, junto um pessoal em volta dum caixote de feira, eles ainda não se mexem, mas começo a discursar. Não sou a criação, sou um de seis bilhões e já que o mundo me expele, vou fazer nos últimos segundos, milionésimos de segundos que me restam, aquilo que sempre tive vontade. Jogo meu terno no chão, arregaço as mangas e começo a falar e fazer. Logo, as estátuas humanas começam a me acompanhar, não é de imediato, mas depois de muita observação eu pude notar seu movimento. Para mim, cada vez mais lento, mas real. Nos meus instantes desperto, entre um chá e outro com Elvis, uma trepada e outra com Zuleika de preto, organizo um partido de vanguarda, explico às estátuas as idéias de Lênin, Rosa e Bakunin. Entendemos juntos a tal da reificação e a sociedade do espetáculo. Montamos um plano de articulação das massas que tiveram de se articular sozinhas, pois a nossa vanguarda errou no fermento. No entanto, com sua espontaneidade, que na minha escala de visão das coisas tornava-se bilhonar, as pessoas fizeram a Revolução. Exatos 15 dias, 23 horas, 34 minutos, 45 segundos, e outras frações, não tão exatas, nem pertinentes para pessoas que não tem a minha visão da passagem da lua e do sol. Eu estava feliz, podia ser expelido do mundo. Mas na verdade me tornei Elvis. Putz, eu queria mesmo ser o John. Até o Ringo era mais bacana.