Friday, February 11, 2000

Lentes de contato

Ele olhava continuamente para ela. Ela olhava aos intervalos. O que ele queria era uma chance, só uma. O que ela pensava era nas possibilidades. Os dois estavam presos, presos cada um no seu mundo, presos cada um no seu modo de ver seus mundos. Ele estava preso ao seu próprio jeito de ser, sua incapacidade de romper certos limites que só ele impunha. À covardia de trocar o incerto e distante, mas possível, pela verdade, pelo concluído; fosse sim ou não. Ela estava presa numa promessa já feita a si mesma, que ela não poderia romper, que ela não queria romper. Rompê-la seria enfraquecer-se para consigo, seria desperdício, deveria haver uma boa razão, ou então uma grande paixão.

As pessoas ao redor, no trabalho, na rua não poderiam saber, não. Não poderiam perceber aquilo que era só dos dois, o único momento onde seus mundinhos isolados se tocavam. Ele não falava muito porque pensava demais. Pensava demais e aí, ou se acovardava, ou concluía a inutilidade do que queria falar. Analisava tudo antes, e percebia para si que não havia nada a ser feito. O coiote falava, continuamente no seu ouvido: Pula, Pula, mas ele não pulava, não havia porquê. Ela pensava também, mas falava um pouco mais. Ela tinha opiniões fortes, cabeça feita, ela provavelmente se ouvisse o coiote pularia, mas o coiote era dele, não dela. Mas enfim, o que lhes importava não eram as palavras, não era o som. O que lhes importava era as imagens. Mas não qualquer imagem, a imagem dos olhos. Seus olhos procuravam-se e analisavam-se. Não, os olhos não analisavam ele a ela e ela a ele. Os olhos analisavam-se mutuamente, só os olhos. As quatro pupilas se acompanhavam em movimento, como num espelho. Tocavam-se como se dessem as mãos, o sentido do tato dele e dela passava pelos nervos óticos. Podiam estar conversando sobre o mundo, sobre a rua, sobre o emprego, sobre a família, mas não era aquilo do qual realmente falavam. A música de suas vozes era acompanhada pelo sentido da visão. É claro que ambos apreciavam um a voz do outro, a voz rouca dela lembrava-lhe alguma cantora de Blues que ele não conseguia identificar, mesmo que ela não se parecesse de forma alguma com as pessoas que geralmente cantam essa música perfeita para a troca de olhares. Ela, por sua vez, parecia saber identificar a voz dele no meio de muitos, e como ele falava pouco, ela parecia até prestar atenção no que ele dizia.

Só o olfato era independente, só a troca de perfume se realizava sem a mediação dos olhos. Quando após um longo tempo sem se verem, eles se abraçavam, com beijinhos no rosto, o tato também aproveitava, mas rapidamente. Nesse momento pelo menos outros dois de seus seis sentidos (doze?) também se preenchiam, também aproveitavam aquilo que só os olhos tinham privilégio.

Ela sempre sorria quando ele chegava, ele sempre devolvia o sorriso (ou era ela que devolvia o sorriso?). Os quatro olhos esboçavam risos tímidos quando se encontravam. Havia uma sinceridade na troca de sorrisos que só as pupilas conseguiam perceber, mas nem as dela contavam para ela, nem as dele contavam para ele. Elas pareciam querer manter os dois no escuro, incertos. Malditas pupilas, brincalhonas, quanto tempo perdido teriam poupado se tivessem revelado o segredo que só vocês sabiam. Tivessem deixado seus respectivos olhos castanhos – todos os quatro olhos eram castanhos – e tivessem ido aos ouvidos, bem ao lado, fariam duas pessoas felizes. Ou melhor, resolvessem de vez o impasse: fossem nos ouvidos do outro, e lá dessem o serviço. Caguetassem que os indícios que ele e ela procuravam levavam a um crime verdadeiro e a dois culpados. Tivessem ido, mostrariam que as possibilidades nas quais pensavam eram mútuas, e tudo seria menos difícil. Sim, menos difícil porque mesmo assim ainda havia os fatores psicológicos que barravam ambos. Apesar do contato mútuo de seus olhares, apesar do tempo que passavam junto conversando, ele estava preso à sua psique covarde e ela ao passado. Dos dois, para ele seria mais fácil, para ele só tinha de pular, só dependia dele, a única coisa que tinha de fazer era ouvir o coiote. Para ela, era mais complicado. Ela não estava sozinha, à noite, outros olhos a procuravam, de manhã também. Ela era feliz assim, satisfeita. Seria bobagem pular de novo, cair numa nova jornada. Recomeçar abandonando uma casa meio construída, buscar abrigo num terreno baldio, que talvez até desse uma casa melhor, mas talvez.

Mas ainda assim, com todos obstáculos que surgiam em sua cabeça, que se opunham aos seus desejos, nada segurava aqueles quatro observadores. Nada os impedia de se beijarem à distância. Qualquer conversa, qualquer intervalo para o café lhes oferecia uma boa desculpa para que as retinas coloridas diminuíssem como lábios abertos a ponto de entrar em contato. Dessa mesma forma, para que as imagens recíprocas surgissem, as pupilas cresciam, e seus desejos se encontravam.
Mas aquilo era o relacionamento dele e dela. Um relacionamento cinematográfico. A narrativa de seus encontros era visual, e só no campo bidimensional das imagens é que poderiam conhecer-se. E isso era a fraqueza dele. Eles não se conheciam, só aos olhos do outro, só à imagem um do outro. Só conheciam a figura distorcida pelo desejo que ele raptara dela e ela seqüestrara dele. Enquanto seus caminhos não se cruzassem em efetivo, enquanto seus sentidos não se encontrassem na totalidade, eles permaneceriam desconhecidos, fotografias num álbum anos depois.